Antes de começar um aviso: se você é sensível (emocional ou teologicamente) quanto a forças sobrenaturais, satanismo ou a existência de Deus ou o Diabo, ‘A Bruxa’ não é um filme para você. Historicamente, o Julgamento das “Bruxas de Salém” realmente existiu, em uma cidade nos EUA que dá o nome ao julgamento. Naquele episódio, a superstição e a alienação de um juiz (e uma população) levaram a execução de aproximadamente vinte pessoas, na maioria mulheres, acusadas de bruxaria. A verdade é que, independente da sua crença, fatos sobrenaturais acontecem a todo momento e em qualquer lugar. Visões nas sombras, pesadelos, sensação de estar sendo observado, possessões demoníacas, ouvir vozes ao pé do ouvido, etc. A premissa do filme é baseada em fatos que ocorreram poucas décadas antes desse julgamento, na Nova Inglaterra (EUA) colonial do século XVII, quando as primeiras bruxas começaram a surgir.
Na trama, William (Ralph Ineson) e Katherine (Kate Dickie) deixam sua colônia aparentemente por divergências religiosas, e levam seus cinco filhos para uma cabana isolada, onde podem cultivar milho, cuidar dos seus animais (cabras, cavalo, bode e galinhas) e recomeçar suas vidas. Cercados por uma floresta sinistra e intimidadora, eles impedem os filhos de entrarem lá e tentam se adaptar a essa nova realidade. Entretanto, o filho recém nascido desaparece misteriosamente enquanto a filha mais velha, Thomasin (Anya Taylor-Joy), brincava com ele. Teria sido uma bruxa, um animal selvagem, um sacrifício? E é com esta tragédia que a vida da família mudaria drasticamente.
Uma das críticas mais recorrentes quanto a filmes de terror é que os personagens não costumam agir como “pessoas”, fazendo escolhas que ninguém em sã consciência faria na vida real. Mesmo de muito bom humor, o máximo que o espectador consegue relevar sem ser “tirado do filme” são uma ou duas vezes, mais do que isso faz a plateia parar e pensar: “Ah, é só um filme…”, acabando completamente com a magia do cinema, que é fazer o espectador se desligar do mundo real por algumas horas. Em ‘A Bruxa’, a trama é tão bem desenvolvida que isso passa despercebido. Os personagens agem por necessidade, seja para seguir sua crença religiosa, seja pela fome que enfrentarão, pelo trauma, etc. Mas não são óbvios demais e nem implausíveis, agem como as pessoas provavelmente agiriam na mesma situação.
O filme resiste bravamente à tentação de cair nos clichês do gênero, escolhendo o caminho mais difícil – porém, mais satisfatório – de trabalhar o desenvolvimento dos personagens e envolver o espectador para que ele acredite na história, e não apenas leve um susto qualquer. Para ilustrar melhor, pense quantos filmes do gênero, ao apresentarem uma protagonista, recorrem ao uso de flashbacks, ou pior, um diálogo com um interlocutor qualquer sobre um importante trauma do seu passado. “A Bruxa”, por sua vez, acerta ao preferir mostrar ao espectador esse trauma, tornando a catarse muito mais poderosa lá na frente. Isso nada mais é do que desenvolvimento de roteiro, o que a maioria dos filmes de terror atualmente tem preguiça de fazer ou prefere subestimar a inteligência do espectador.
‘A Bruxa’ é dirigido pelo novato Robert Eggers, vencedor de Melhor Diretor em Drama no prestigiado Festival de Sundance, homenageado por sua “visão consistente, criando uma história assustadoramente detalhada e magistralmente executada”, como consta no seu prêmio. E a homenagem é totalmente merecida, tanto que o mestre do terror Stephen King declarou que se apavorou assistindo ao filme e ainda representantes de igrejas satânicas aprovaram o filme, exibindo-o a seus fiéis, alegando que o filme é uma “impressionante apresentação da visão satânica que serve para propagar a contemporânea discussão da experiência religiosa”. Sem querer entrar nesses méritos, garanto que o filme é realmente perturbador e deixaria rebeldes contra a religião Cristã, como o poeta John Milton (de Paraíso Perdido, escrito na época em que o filme se passa, no século XVII), orgulhoso. O roteiro – que também é assinado por Eggers – é bem amarrado, o suspense é pacientemente construído e o diretor utiliza primorosamente composições de cenas e sequências (com variações atmosféricas, ou seja, cenas que começam super tranquilas e de repente o caos está fora de controle), de modo que fiquem marcadas na mente do espectador depois de um bom tempo.
A atriz Kate Dickie (mais conhecida pelo papel de Lysa Arryn em Game of Thrones) revive um papel muito semelhante ao da série, como uma mãe super protetora, que tende a piorar muito quando passa por um luto na família. Apesar de não trazer nenhuma novidade na sua performance, Kate prova que realmente tem talento para atuar no cinema, especialmente em papéis nos quais precise interpretar uma pessoa emocionalmente instável. Mas a grande revelação em termos de atuação é o ator Ralph Ineson. O ator britânico que já atua há um bom tempo, mas nunca obteve um papel de destaque – incluindo na mesma série ‘Game of Thrones’, na qual tem um papel bem secundário na primeira temporada – aproveita seu sotaque e sua voz imponente fazendo ótima leitura do inglês “antigo” da época, compondo um personagem cercado de responsabilidade, contradição e ainda dividido entre o que defende e aquilo que seus olhos não parecem acreditar. O elenco mirim também está espetacular, desde os gêmeos até os irmãos Thomasin e Caleb (Harvey Scrimshaw), mas o grande mérito desta performance está nas mãos do diretor, que soube como guiá-los e deu a cada um seu grande momento para brilhar na tela (toda a sequência de um dos filhos doentes em casa é de arrepiar, por exemplo!).
O design de produção é simples, mas muito bem caracterizado. Tanto os personagens, como os cenários e a região rústica onde a trama se desenrola, antes que alguém possa dizer alguma coisa, já dizem muito sobre aquelas pessoas e a época em que a história se passa. Como no gênero terror e suspense a trilha sonora tem um papel fundamental para provocar no espectador as emoções desejadas, o compositor Mark Korven faz um trabalho muito bom, acompanhando a mudança da atmosfera conforme o filme vai ficando mais e mais sério, ele utiliza desde instrumentos “caipiras” no início do filme até notas fortes e pesadas que dão um clima muito mais denso do meio para o final.
A fotografia de Jarin Blaschke tem enquadramentos bem escolhidos, sabendo segurar o suspense em alguns momentos, focar nas emoções e reações dos personagens em outros, mas se destaca pelo próprio método utilizado. Os elogios não são por acaso. Filmado em um formato pouco convencional hoje em dia (1.66 : 1), Blaschke revelou que a escolha foi tomada para dar mais verossimilhança à experiência de assistir ao filme. Neste formato, a casa e o celeiro ficam com a maior sensação de claustrofobia, enquanto na floresta, essa escolha valoriza a altura das árvores com relação aos personagens, e o diretor Robert Eggers simplesmente adorou o resultado. O DP também declarou que grande parte do filme foi filmada apenas com a luz ambiente disponível, auxiliando bastante no impacto visual do filme (qualquer pessoa que já esteve envolvida em um set de filmagem sabe a dificuldade que é encontrar a iluminação ideal, portanto, optar por não utilizar nenhum artifício é uma decisão bastante perigosa e corajosa).
O filme conta com vários produtores, dentre eles o brasileiro Rodrigo Teixeira, um dos principais produtores brasileiros, de filmes como ‘O Cheiro do Ralo’ (2006), ‘Heleno’ (2011) e ‘Francis Há’ (2012), além do polêmico ‘Love [3D]’ (2015). Em um primeiro momento, a produção se assemelha bastante com ‘A Vila’ (2004) de M. Night Shyamalan. Sua diegese, a época em que se passa, e até mesmo a sua formulação narrativa dialogam. Mas ok, as semelhanças param por aí, pois ‘A Bruxa’ tem um desfecho muito mais satisfatório! Após tantos filmes de terror “mais do mesmo”, enfim surge este que será um futuro clássico do gênero certamente, um filme com cenas marcantes, grandes performances, excelente direção e que se destaca em uma época onde muitos já estavam perdendo as esperanças… O cinema ainda respira!