No poster do filme, Liam Neeson forma quase uma fechadura, que simboliza a passagem dos dois jovens padres para um novo mundo.
Não sei para vocês, mas fé e religião são para mim alguns dos temas mais delicados de se debater e até mesmo compreender. Lembro de ter lido sobre uma senhora que se ajoelhava e acendia incenso todos os dias para uma estátua na China. As pessoas olhavam sem entender muito bem, mas ela realmente tinha fé e prosseguia com suas orações.
Até que lhe avisaram que a estátua era de Garen – um personagem do jogo League of Legends – e que uma lan house a havia construído para atrair fãs do game. A senhora achava que estava fazendo suas preces para o general Guan Yu, que alguns chineses consideram um deus no país. Então, como compreender algo tão pessoal e misterioso como os caminhos da fé?
Brincadeiras à parte (embora essa história tenha realmente acontecido), eu tinha 12 anos quando entrei para uma igreja evangélica. Após 10 anos como membro ativo, simplesmente parei de ir. As pessoas me perguntavam: ‘mas você abandonou Deus?’. Não, eu não O abandonei. Não fui para outra religião e também não acredito que Ele esteja trancado dentro de quatro paredes.
Eis que nessa minha busca íntima por respostas, surge o projeto mais pessoal do lendário diretor Martin Scorsese: a obra-prima ‘Silêncio’. O filme conta a história de dois padres portugueses que vão para o Japão atrás do seu mentor (Liam Neeson), cujo boatos indicam que abandonou o cristianismo e se converteu à religião local. Os dois jovens padres também vislumbram a oportunidade de ensinar o cristianismo em um ambiente completamente hostil e fazer a diferença fora da igreja.
‘Silêncio’ é adaptado pelo próprio Scorsese e seu companheiro de longa data Jay Cocks (‘Gangues de Nova York’), da respeitada obra de Shûsaku Endô. O filme pode ser considerado um remake de ‘Chinmoku (1971’)’, baseado no mesmo livro e que teve seu diretor indicado à Palma de Ouro em Cannes. Em uma época onde ser cristão no Japão significava a morte – pois eles eram caçados, torturados e executados de forma extremamente cruel – como apenas dois padres conseguiriam resgatar seu mentor e ainda alimentar as almas cristãs japonesas sedentas pela palavra?
Através de uma obra extremamente reflexiva, onde a coragem e a fé são levadas ao extremo, certamente no processo de fazer o filme, Scorsese encontrou respostas para seus questionamentos mais profundos. E, ao assistir essa maravilha, tenho muito orgulho em dizer que também encontrei respostas para as minhas perguntas. ‘Silêncio’ é um filme tão poderoso e relevante que transcende o próprio cinema e toca a vida de quem estiver aberto para recebe-lo.
Começando minha análise pelo roteiro, mais uma vez Scorsese utiliza narrações para ajudar a contar a história e explicar o interior dos personagens principais. Quem me conhece sabe que não sou muito adepto deste tipo de condução de narrativa, mas se há alguém que sabe como poucos utilizar esse artifício para dar peso a trama sem parecer expositivo é o diretor (vide filmes como ‘Os Bons Companheiros’, ‘Cassino’ ou ‘O Lobo de Wall Street’).
Tão logo os padres deixam a igreja rumo a sua peregrinação, uma frase simples ganha destaque: ‘as paredes da igreja caíram’. Um verdadeiro ‘tapa na cara’ de quem pensa que a religião deve ser praticada apenas no conforto e em dias marcados. Rodrigues (Andrew Garfield) e Garupe (Adam Driver) sabiam disso. Praticar a fé também é sair da comodidade, pois na sua jornada pessoal cada um descobre quem realmente é e fortalece suas convicções.
Sendo assim, mesmo sem saber em quem confiar os dois chegam escondidos ao Japão. São acolhidos por um pequeno vilarejo, mas logo descobrem que há uma recompensa pela captura de cristãos e, pior ainda, os padres valem o dobro. Eu não sei como vocês agiriam em uma situação delicadíssima como essa, mas eu – na minha fraqueza como homem – provavelmente desistiria.
E aí está a grande diferença dos dois padres para este que vos escreve. O casting de Andrew Garfield e Adam Driver foi perfeito, pois ambos demonstram uma fragilidade física incrível (que é reforçada pela aparência debilitada por conta da fome), mas ambos os atores trazem consigo uma força interior extremamente poderosa. Assim, eles passam credibilidade para o espectador que pensa: ‘esses dois não vão abrir mão de suas crenças por nada’! Será?
O roteiro, brilhantemente adaptado, foi completamente esnobado no Oscar. Como toda grande obra, ‘Silêncio’ não se contenta em mostrar apenas um lado da história. Embora seu foco e o ponto de vista da trama sejam contados majoritariamente através do padre Rodrigues, há uma série de diálogos complexos e reveladores com os japoneses que também transmitem com clareza (e, para alguns, empatia) o por que da cultura oriental querer se proteger e valorizar suas tradições.
Há momentos que subvertem não apenas nossa expectativa, como a dos próprios personagens. Rodrigues, por exemplo, em algum momento pode ter pensado que seria como o próprio ‘Cristo’. Durante sua jornada ele tem seu Judas (sublime trabalho de Yosuke Kubozuka), vê o reflexo de Jesus na água como se fosse a si mesmo, mas não entende porque seu calvário é diferente. A tortura favorita dos japoneses é fazer os padres apostatarem (renunciarem) pisando no rosto de Cristo. Uma tarefa simples – afinal, todos os dias pessoas se corrompem – mas com impacto extremamente poderoso.
Todo o elenco está tão bem que poderia ter recebido indicações até de atores coadjuvantes (como o já citado Kubozuka). Adam Driver tem menor importância, mas não deixa de se destacar. Agora, o grande elogio vai para a fenomenal entrega de Andrew Garfield no papel. Muito melhor, inclusive, do que em ‘Até o Último Homem’, pelo qual foi indicado ao Oscar de Melhor Ator. Tanto na demonstração física, quanto no equilíbrio de fragilidade e obstinação de seu personagem, o ator impressiona.
Há tanto a falar sobre ‘Silêncio’, mas o texto está ficando muito longo. Para quem gosta de aspectos técnicos, o filme é um deleite visual e sonoro. A fotografia esfumaçada e cheia de planos incríveis da paisagem exótica criada por Rodrigo Prieto, valem totalmente sua indicação ao Oscar (a única do filme, inclusive). Quanto a trilha sonora, realmente temos a sensação de que o silencio domina grande parte do longa, mas essa foi uma sutileza dos compositores – a pedido de Scorsese, que não queria música japonesa ‘tradicional’ – que confundiu até a Academia.
A trilha foi excluída da disputa pelo Oscar por – segundo a organização do prêmio – conter ‘substância musical insuficiente’. Acabaram punindo um dos trabalhos mais criativos dos últimos anos, pois os compositores utilizaram sons da natureza como insetos, água, vento, folhas acompanhadas de uma composição extremamente climática e pesarosa para ambientar a história. Lamentável…
‘Silêncio’ não é apenas um dos melhores filmes de 2016/17, como um dos melhores da carreira de Martin Scorsese. Uma obra que fala sobre medo, intolerância religiosa, resistência a influências externas (segundo o Inquisidor japonês, ‘o Japão é um pântano e nada cresce num pântano’), realçada por uma direção completamente madura e competente, proporcionando imagens tão poderosas que, sendo sincero, talvez nem eu as compreenda tendo visto o filme apenas uma vez.
Uma obra emocional cheia de tensão, que resgata a verdadeira essência da fé. A história de um homem que aprende os mistérios do amor divino da maneira mais dolorosa que existe, tendo todos os seus limites levados ao extremo.
E você, já assistiu ou está ansioso para ver? Concorda ou discorda da análise? Deixe seu comentário ou crítica (educadamente) e até a próxima!