Em 2019, o icônico personagem Batman completa 80 anos desde sua criação para os quadrinhos. E ainda que as adaptações para cinema já datem da década de 40, no formato episódico, hoje as adaptações mais conhecidas começam com o seriado para a televisão de 1966, seguido da adaptação de Tim Burton (1989), a trilogia de Christopher Nolan(2005-2012), e a recente adaptação de Zack Snyder (2015-2017) para a tentativa de criação de um universo cinematográfico. Todas essas produções, as mais memoráveis, tem uma coisa em comum: em algum momento tiveram a participação de um personagem que quiçá seja ainda mais marcante que o próprio Batman – o Coringa.

Com a tentativa fracassada da criação de um universo cinematográfico coeso para os personagens da DC Comics, a Warner Bros. deixou de lado temporariamente a última versão do Coringa, interpretado por Jared Leto, para produzir um filme independente e sem conexão com nenhum filme anterior, com uma história original para o clássico vilão. Escrito e dirigido por Todd Phillips (conhecido por comédias como “Se Beber Não Case”) e protagonizado por Joaquin Phoenix (conhecido por dramas cômicos como “Ela” e “Um Homem Irracional”), “Coringa” chega aos cinemas em uma produção que tecnicamente beira a perfeição, mas ao mesmo tempo traz uma inversão de valores absurda associada a uma mensagem política unilateral que incita o caos e a violência.

No longa, Arthur Fleck é um palhaço de rua com graves problemas psicológicos que vive com sua mãe em condições precárias. Uma sequência de acontecimentos desastrosos o leva a investigar suas origens, que serão o estopim para que um psicopata seja revelado. Joaquin Phoenix se entrega de corpo e alma para o personagem em uma atuação brilhante e com uma característica que torna o personagem ainda mais assustador: é uma atuação palpável, muito próximo do que consideramos que possa ser real.

Todd Phillips surpreende por entregar um personagem dramático tão bem escrito, visto que sua carreira é basicamente pautada na comédia, e impressiona muito pelo ritmo de roteiro, escolha precisa de enquadramentos, e capacidade de criar uma ansiedade no público com um desfecho a altura. A escolha da trilha sonora também foi feita a dedo, e nos guia para os diversos sentimentos que o filme pretende nos levar. E como a cereja de um bolo, ainda temos a participação de Robert De Niro que dispensa qualquer comentário.




Todavia, é necessária uma reflexão especial para este filme, pois em meio a todo esse cuidado que entregou uma incrível obra cinematográfica, temos a presença de uma mensagem política tendenciosa e unilateral, a qual nos dias de hoje se mostra perigosíssima para ser veiculada em massa, pois incita o caos e a violência de tal forma que pode influenciar as fracas mentes da geração atual. Talvez o maior perigo seja o uso de um plano de fundo muito conhecido, com um personagem muito conhecido para expor uma opinião política muito clara e que muito se distancia do que foi feito em torno do Coringa até agora.

Ao contrário dos recentes filmes da J.K. Rowling que traz personagens originais para levantar um debate político e sutil, “Coringa” escancara na tela a luta entre classes sociais, com uma visão deturpada e hipócrita dos “ricos”, jogando na lama de forma desnecessária e imoral o que tinha sido estabelecido na história do Batman até aqui, e valoriza o caos de uma forma muito crua. Pela primeira vez, temos um Coringa que não traz o caos pelo caos, mas um Coringa como um símbolo de uma luta social, que coloca a violência como principal forma de combate “aos ricos” e “ao sistema”. Não seria uma surpresa se uma das intenções dos produtores do longa fosse substituir as máscaras do V, personagem do longa “V de Vingança”, em manifestações populares, pela máscara do Coringa.

O braço político do cinema não está em julgamento aqui. A política é inerente a qualquer forma de arte. Mas a utilização de um personagem há muitos anos estabelecido para a transmissão de um viés ideológico é no mínimo passível de um questionamento ético. Se tirássemos todos os elementos que remetem ao personagem da DC Comics do filme, o filme não perderia absolutamente nada em questão de conteúdo e valores. Até quando é correto utilizar-se da propriedade intelectual de outrem para transmitir uma ideologia?

Com essas premissas, caro leitor, peço cautela e um olhar crítico e cético para o que te espera nas salas de cinema. Prêmios e aplausos em festivais nada significam se aqueles que o proporcionam também estão imersos no mesmo mar de hipocrisia ideológica.

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