Em 1609, o jovem príncipe Hamlet perde seu pai – o rei – após uma trágico assassinato cometido pelo invejoso tio. Em 1994, o jovem príncipe Simba perde seu pai – o rei – após um trágico assassinato cometido pelo invejoso tio. E em 2019, o ciclo da vida – ou melhor, o ciclo mercadológico da Disney – chega ao seu início novamente.

Já até caiu nas graças do público sobre a coragem dos iniciantes Roger Allers e Rob Minkoff adaptarem uma obra de William Shakespeare em uma narrativa infantil da Disney e caiu ainda mais nas graças do público quando O Rei Leão se tornou uma das maiores animações do estúdio e também da história do cinema. Devido a muitas características, mas principalmente por conseguir trabalhar temáticas densas em uma narrativa leve, divertida e recheada de cantoria, a obra de Allers e Minkoff conquistou o coração de muitos espectadores mundo afora, incluindo o que escreve este texto. 

Na onda de dar uma nova roupagem a seus clássicos, a Disney vem em uma constante sequência de colocar suas obras de volta aos cinemas com novas características e tratamentos. O Rei Leão ganhou sua vez, e agora na mão de um cineasta nada iniciante e que já se tornou um queridinho do estúdio. Jon Favreau não só se tornou o responsável pelo início de uma década de Marvel, como também abrilhantou os olhos daqueles que duvidavam das versões live-actions – ainda mais após Malévola (2014) e Cinderela (2015) – com sua versão particular de Mogli: O Menino Lobo (2016). Ali, Favreau declamou sua marca de diretor e deixou claro o tom que adotaria em suas obras, caso fosse chamado novamente. Com o sucesso de crítica e também com o encantamento causado pelo visual nas pessoas, a Disney sentiu que o americano era a pessoa certa para renovar a joia rara da empresa. E o cineasta se provou a escolha certa. 

Com Mogli, Favreau definiu um tom mais sombrio e denso para sua versão, justamente pelo intuito de explorar a tecnologia e trabalhar personagens altamente realistas. Bagheera e Baloo não eram mais meros personagens animados com técnicas dos anos 60. Os dois se tornaram reais, com tons mudados. A narrativa foi melhorada, a ambientação ficou mais realista e os personagens se tornaram menos performáticos, como era costumeiro das animações do estúdio. Com O Rei Leão não foi diferente.

Com uma tecnologia bem mais avançada, ficou claro com os primeiros materiais divulgados a perfeição que a Pedra do Rei e os personagens já queridos pelo público teriam. Nisso, todo o tom animado, divertido e estonteante da animação de 94 foram adaptados ao “mundo real”. Isso porque o tratamento dos personagens passou para um tom mais realista, sem as expressões exageradas de Scar e Simba, por exemplo. As caras e bocas e reações nítidas foram trocadas por expressões faciais limitadas a dos animais e, com isso, tudo ganhou um tom mais “pé no chão”. Pela frase em questão, parece uma mudança ruim, mas está longe disso. A narrativa em si não sofreu drásticas mudanças como a adaptação de Dumbo (2019), por exemplo – muito pela jornada de Simba ser perfeitamente bem escrita dentro de sua ficção.

O trabalho do roteirista Jeff Nathanson, então, foi o de conseguir encaixar tudo da maneira que Favreau havia arquitetado, conseguindo acrescentar e mudar um ponto aqui e outro ali. Mudanças essas que estão em pequenas vírgulas da animação, seja em uma frase ou uma posição geográfica, mas nada exuberante que mudasse os rumos da história. Por sua vez, o roteirista transforma determinados pontos que se mostraram úteis, o que significa que não é um verdadeiro problema na versão original, até a mudança ser feita. Este ponto, especificamente, fica mais claro no núcleo das hienas. Enquanto Shenzi, Eddie e Banzai são unidos, aqui, Shenzi ganha um protagonismo maior, sendo, então, a líder de todas as hienas. Ao observar a versão de 94, não há problema nos três animais serem “um só”, porém, a escolha de colocá-la na liderança, deu um ar de autoridade que combina perfeitamente com a personagem. Essa transformação ocorre também – de forma mais leve – com Sarabi, Nala e até o próprio Zazu, mas nada tão distante do material original. 

A principal modificação está justamente no tom. Como explicado, a proposta mais realista de Favreau – trabalhada brilhantemente em Mogli – substitui as caricatas expressões dos personagens. Consequentemente, a mudança de tom ocorre também na narrativa.

Apesar da história ser a mesma, o clima é diferente. A coloração quente, com uso constante do vermelho, do amarelo e do verde, é trocada por algo mais seco, com os tons mais desgastados, justamente dando o verdadeiro tom de uma savana africana. As músicas, apresentadas dentro de clipes extremamente coreografados, coloridos e simbólicos, são substituídos por canções apresentadas de maneira mais coesa com o universo, sem qualquer sinal carnavalesco e fantasioso que só uma animação pode oferecer. E é preciso reforçar que nada dessas transformações são ruins. A “magia” que tantas outras críticas citaram está presente, porém de uma forma diferente, como sempre foi a proposta do longa.

Há tempos Favreau explica sobre o quão diferente seria sua visão e isso se cumpriu, mas nem por isso diminui a força de sua narrativa e dos personagens. Do mesmo modo que Mogli teve suas alterações, O Rei Leão também teve, e nem por isso o longa de 2016 sofreu as mesmas opiniões que o filme de Simba vem sofrendo, o que pode ser analisado como certa hipocrisia da parte de algumas análises pelo fato do carinho pelo menino lobo não ser o mesmo pelo leãozinho. 

 De certa forma, as transformações ocorrem para esse novo universo funcionar. O tom mais intenso faz personagens ganharem forças não tão eminentes na animação. Scar é o que mais passa por isso. É inevitável que o leão vermelho com jubas negras se tornou uma das figuras maléficas mais significativas da história do cinema, devido ao seu caráter maligno balanceado com seus momentos sarcásticos e irônicos, dando ainda mais peso a suas ideologias. Aqui, seus momentos irônicos não são tão explícitos, estando presente nas entrelinhas de suas falas e estratégias, dando mais espaço para o caráter maligno.

Trazendo novamente a comparação, é o mesmo o que acontece com Shere Khan. Esse perfil mais centrado dado a Scar faz dele menos pomposo como é em sua versão original, e isso influencia na estrutura de determinados acontecimentos, como a própria morte de Mufasa (sem toda aquela reação de desespero do rei e a malícia do irmão) e a apresentação da canção Be Prepared. Inclusive, essa é a que passa pela maior transição de uma proposta a outra. A canção não ganha a mesma performance, justamente por serem Scars diferentes. A animação, além de ter uma liberdade técnica muito maior para trabalhar fantasia, tinha a proposta real de construir clipes coloridos e animados a cada música. Aqui, a realidade supera, então, não há a presença da fantasia. Com isso, as canções sofrem adaptações para se encaixar e Be Prepared possui um tom bem mais ameno, mas com a mesma tenebrosidade da original. E as duas versões funcionam perfeitamente, cada uma dentro do seu próprio universo. 

Todas as outras canções passam pela mesma modificação. Devido ao tratamento mais pragmático, as músicas possuem a mesma estrutura técnica, mas com suas novas versões nos clipes, e a narrativa consegue ser bem construída para essas mudanças. Tecnicamente não há críticas para as canções, até pela ilustre presença de grandes musicistas na produção, que deram o tratamento necessário para tudo funcionar. O ponto mais negativo está na nova canção Spirit. Sua fraqueza não está na letra ou na apresentação de Beyoncé, mas sim no encaixe narrativo.

Por ser um musical, O Rei Leão conta com as apresentações dos personagens – tirando The Circle Of Life, justamente por ser a música de abertura – para cada momento musical. No entanto, Spirit é apresentada como trilha, sem a apresentação da Nala, no caso. A escolha quebra todo o ritmo que o longa vinha tomando com as performances, além de ser incluída em um momento não tão apropriado, o que também gera cerco ruído dentro da jornada. 

Apesar da pequena falha na canção, O Rei Leão é abrilhantado por sua dublagem. O poder das vozes escolhidas dá força para cada um dos personagens presentes, dando a eles uma vida própria, mesmo com todos sendo feitos através da computação gráfica.

Apesar de brilhantes participações de nomes como James Earl Jones voltando como MufasaDonald Glover como Simba, Beyoncé como Nala e Alfre Woodard como Sarabi, há um destaque especial para três nomes: Seth Rogen, Billy Eichner e Chiwetel Ejiofor.

A dupla de humoristas encanta como Pumba e Timão, respectivamente. Os dois entregam uma dinâmica única e apresentam o tom cômico perfeito aos dois personagens, dando-lhes a importância necessária para o caminhar da jornada de Simba, além da encantadora performance de Hakuna Matata. Ejiofor, por sua vez, teve a função de justamente não trazer o tom cômico presente em Scar. O ator embarca na frieza da voz do vilão de maneira rica, transmitindo a força e maldade necessária à nova versão. Seu trabalho vocal ganha certa superioridade em comparação com os outros dubladores e se encaixa perfeitamente na proposta, sendo mais maduro quanto suas atitudes e suas ideologias. A falta de tons mais exagerados, como é realizado no original, dá uma liberdade maior para Ejiofor dar mais sua cara, da mesma forma que Jeremy Irons fez em 94. Os dois são os personagens, mas cada um em sua forma.

John Kani também não passa despercebido dando voz ao Rafiki. Há uma certa importância em ter Kani no elenco, justamente por ele ser único sul-africano dentre os dubladores. Essa importância está justamente em sua participação como o babuíno, já que o mesmo traz muito da cultura africana em suas aparições e Nathanson acerta ao construir uma conexão do personagem com a natureza, de uma forma muito mais significativa e melhor construída que na animação. O tom mais realista de Favreau fez com que o animal ganhasse uma aura mais próxima do místico que o personagem sempre ofereceu, ainda que, ao comparado com a animação, há mudanças positivas e negativas. 

Com seu tratamento próprio, Jon Favreau acertou em pontos, como também perdeu um pouco a mão em outros. No entanto, teve o máximo respeito pelo material original e conseguiu transmitir isso com uma visão própria sobre a obra, chegando perto de atingir a perfeição que a animação sempre conteve. 

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