Sensível e brutal, “Olhos que Condenam” consegue entregar um espetáculo de roteiro, atuação e fotografia

Se você tem o costume de consumir conteúdo audiovisual, certamente já se deparou com alguma obra baseada em fatos, as quais se utilizam da linguagem audiovisual para ilustrar um acontecimento real e desenvolver uma história de identidade própria; e é exatamente o que a Netflix se propôs a fazer com “Olhos Que Condenam”. Em 19 de abril de 1989, cinco adolescentes da cidade de Nova York são injustamente acusados de estuprar e espancar uma corredora durante a noite em um dos parques mais famosos do mundo: começa assim a revoltante e triste história dos Cinco do Central Park.

Após presenciarem um grupo de pessoas se divertindo e indo “fazer arruaça” no maior parque de Nova York, os adolescentes Raymond, Kevin, Antron, Yousef e Korey também decidem ir, cada um por um motivo, para o Central Park. Nenhum dos cinco, entretanto, planejava fazer qualquer coisa errada no local, mas não foi assim que suas presenças foram entendidas: após um ataque brutal por parte da polícia novaiorquina, a vida dos cinco protagonistas nunca mais foi a mesma. Naquela mesma noite, uma corredora foi estuprada e agredida no mesmo local, e as atenções voltaram para os cinco jovens negros (e um latino), que se tornaram os principais alvos da “investigação”, mesmo que não houvesse prova alguma contra o grupo – valendo ressaltar que, com exceção de Yusef e Korey, os cinco nem ao menos se conheciam.

A minissérie de quatro capítulos consegue, de forma brilhante, contar uma história que já seria brutal por si só caso fosse apenas ficção, mas a simples ideia de que cinco adolescentes de 14 a 16 anos realmente foram acusados, presos, espancados, abusados e desumanizados por estarem no local errada, na hora errada e (muito possivelmente) por ser negros é suficiente para impactar qualquer espectador que disponha do mínimo de empatia. Mas, felizmente, não para por aí: o roteiro, a direção de fotografia e os atores em cena trabalham juntos de forma extremamente harmoniosa e inteligente para contar esta história repleta de sentimento e, mais ainda, de dor.

A utilização de planos fechados no rosto dos personagens em cenas de extremo sentimentalismo (como no momento de seus vereditos, por exemplo), demonstra um extremo cuidado com a fotografia da obra, valorizando a atuação dos atores que, sem sombra de dúvida, conseguem transparecer de forma genial o sentimento de cada um dos personagens – com destaque para a atuação de Jharrel Jerome (“Moonlight”), que conseguiu carregar o papel de Korey Wise com grande brilhantismo e comoção tanto na adolescência quanto na vida adulta. A fotografia também se destaca bastante nas transições de tempo, principalmente no crescimento dos protagonistas e na indicação de suas mudanças durante a época de prisão, como na evolução do personagem Raymond, em que a câmera está em constante movimento, mostrando o personagem conversando com o pai pelo telefone, e a câmera vai se intercalando entre o pai e o filho, só que Ray se encontra mais velho a cada trecho diferente da conversa.

Em vez de continuar falando sobre as qualidades técnicas da obra que, por sinal, são muitas, é bastante relevante comentarmos também sobre a necessidade desta minissérie no contexto atual não só do Brasil como do mundo, no qual vemos discursos de ódio serem repetidos incansavelmente – não que, em algum período da humanidade, tenhamos vivido em uma época realmente pacífica. Tanto o nome nacional quanto o original da minissérie (“When They See Us”) carregam um grande peso em seu significado: o racismo tão presente no dia a dia da população negra, vindo de olhares preconceituosos que, por uma postura retrógrada e sem sentido, os enxergam como criminosos em potencial apenas pela cor de pele.

A obra consegue alcançar muito bem aquilo que propõe, contribuindo para o debate em relação ao racismo e injustiça social na contemporaneidade, satisfazendo toda e qualquer expectativa que grande parte do público criou sobre ela e, ao mesmo tempo, surpreendendo positivamente quem não a conhecia. Uma das provas de que a obra está gerando impacto nas pessoas é que a ex-promotora Linda Fairstein, responsável pela acusação e prisão dos meninos, vem recebendo duras críticas e acusações de racismo nas redes sociais, sendo que algumas pessoas, inclusive, fizeram um abaixo assinado para que as livrarias parem de vender seus romances policiais. “Olhos que Condenam”, portanto, apresenta de forma responsável, sensível e, ao mesmo tempo, brutal a história dos Cinco do Central Park, mostrando que uma história real pode apresentar um cenário ainda mais amedrontador, frio e cruel do que uma obra de ficção.

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